A
renda líquida obtida em 2012 pelas 100 pessoas mais ricas do mundo, 240
bilhões de dólares, poderia acabar quatro vezes com a extrema pobreza
no planeta. A conclusão está num relatório publicado no fim de semana
pela ONG britânica Oxfam. A entidade não entra em detalhes a respeito
das contas que fez para chegar ao dado, mas os números servem como
alerta para a intensa e crescente desigualdade social no mundo.
O
relatório da Oxfam ecoa estudos e análises econômicas recentes sobre a
desigualdade. Hoje, as diferenças entre os países estão diminuindo, mas a
desigualdade entre os mais ricos e os mais pobres dentro de cada nação
está crescendo. Essa é a regra na maior parte das nações em
desenvolvimento e também nas desenvolvidas.
Nos
Estados Unidos, a desigualdade social é tão grande hoje em dia que, nas
palavras da revista The Economist, supera a das últimas décadas do
século XIX, a chamada "Era Dourada" do capitalismo norte-americano. A
porcentagem da renda nacional que vai para o 1% mais rico da população
dobrou desde 1980, de 10% para 20%. Para o 0,01% mais rico, a bonança
foi maior: sua renda quadruplicou.
Na
União Europeia, a situação também é ruim. No livro Inequality and
Instability (Desigualdade e Instabilidade, em tradução livre), o
economista James Galbraith mostrou que, se tomada como um conjunto, a UE
supera os Estados Unidos em desigualdade. Isso se explica, em parte,
pelas diferenças entre os diversos países do bloco. Ainda assim, se
tomadas separadamente, as nações europeias também têm observado aumento
da desigualdade.
Um
estudo sobre o tema publicado em 2012 pela OCDE, concluiu que "desde a
metade dos anos 1980?, os 10% mais ricos de cada país "capturam uma
crescente parte da renda gerada pela economia, enquanto os 10% mais
pobres estão perdendo terreno". No Japão, onde 100 milhões de pessoas se
diziam de classe média, estudos mostram, desde o fim da década de 1990,
o aumento da desigualdade a partir da metade dos anos 1980.
A política sequestrada
Não
é uma coincidência o aumento da desigualdade no mundo desenvolvido
desde os anos 1980. Foi nesta época que começaram a ter efeito as
políticas lideradas pelos governos de Ronald Reagan nos Estados Unidos
(1981-1989) e Margaret Thatcher (1979-1990) no Reino Unido, mas adotadas
em boa parte do mundo por outros governantes, como Helmut Kohl
(Alemanha), Ruud Lubbers (Holanda) e Bob Hawke (Austrália): impostos
mais baixos, desregulamentação do sistema financeiro, redução do papel
do governo e outras medidas integrantes do receituário neoliberal.
Essa
política, arrimo da globalização, teve alguns efeitos positivos, mas
foi levada a extremos por quem se beneficia delas. Para manter as
políticas desejadas, que aumentavam sua riqueza (e também a
desigualdade) esses grupos de interesse se encrustaram nos círculos de
poder. Eles sequestraram a política.
Este
fenômeno é analisado no livro Winner-Take-All Politics (Política do
vencedor leva tudo, em tradução livre), dos professores Jacob S. Hacker,
de Yale, e Paul Pierson, da Universidade da Califórnia. Em artigo de
capa da revista Foreign Affairs em dezembro de 2011, o jornalista George
Packer resume o argumento do livro em duas palavras: dinheiro
organizado. Foi no fim dos anos 1970 e início dos anos 1980 que as
grandes corporações de diversos setores da economia passaram a financiar
as campanhas eleitorais, dando início a uma "maciça transferência de
riqueza para os americanos mais ricos".
Este
modelo de política, e de fazer política, grassou no mundo desenvolvido e
foi transplantado para os países em desenvolvimento, onde foi emulado
com maestria pelas elites econômicas locais. Não é uma surpresa, então,
que a desigualdade esteja aumentando também nesta região. A Índia
acumula diversos bilionários, mas continua sendo o país com mais pobres
no mundo. A África do Sul é mais desigual hoje do que era no fim do
regime segregacionista do Apartheid. Na China, onde não é preciso
sequestrar a política, apenas pertencer ou ter um bom relacionamento com
o Partido Comunista, a desigualdade é semelhante à sul-africana: os 10%
mais ricos ficam com 60% da renda.
A América Latina e o caso do Brasil
O
único lugar do mundo onde a desigualdade está caindo de forma
sistemática é a América Latina, justamente a região mais desigual do
mundo. Isso ocorreu nos últimos anos por dois motivos. O modelo
neoliberal, e a ascensão do "dinheiro organizado", também chegaram aos
países latino-americanos, mas em alguma medida entraram em choque com
forças políticas contrárias a uma parte importante do receituário, a
não-intervenção do Estado na economia.
Assim,
os governos da região, entre eles o de Luiz Inácio Lula da Silva no
Brasil, conseguiram estabelecer a redução da desigualdade social como
uma prioridade. Em segundo lugar, os países da região, também incluindo o
Brasil, foram muito beneficiados pelo rápido crescimento econômico
provocado pela existência de um mundo faminto por commodities.
Há,
entretanto, inúmeras dúvidas a respeito da sustentabilidade do modelo
latino-americano de redução da desigualdade, especialmente quando a
economia começar a desacelerar, situação em que o Brasil já se encontra.
Como notou o colunista Vladimir Safatle em edição de dezembro de Carta
Capital, o capitalismo de Estado do governo Lula promoveu um processo de
oligopolização e cartelização da economia, o que favorece a
concentração de renda nas mãos de pequenos grupos.
Ao
mesmo tempo, Lula não fez, e Dilma Rousseff não dá indícios de que
promoverá, a universalização e qualificação dos sistemas públicos de
educação de saúde. Sem essas reformas, a classe média seguirá gastando
metade de sua renda com esses dois serviços básicos e os pobres
continuarão com acesso a escolas e hospitais precários. Os ricos, por
sua vez, não terão problemas. A desigualdade de renda poderá cair ainda
mais, mas a desigualdade de oportunidades vai perseverar, e a imensa
maioria dos pobres continuará pobre.
Para fazer essas reformas, e outras potencialmente capazes de reduzir a desigualdade, como a taxação de grandes fortunas e de heranças e reformas estruturais, o Brasil e outros países latino-americanos enfrentarão as mesmas questões do mundo desenvolvido. Em grande medida, a política latina foi sequestrada pelo "dinheiro organizado". Levantamento do repórter Piero Locatelli mostra que, em 2010, 47,8% das doações eleitorais no Brasil foram feitas por empresas e que apenas 1% dos doadores foram responsáveis por 73,6% do financiamento da campanha.
Para fazer essas reformas, e outras potencialmente capazes de reduzir a desigualdade, como a taxação de grandes fortunas e de heranças e reformas estruturais, o Brasil e outros países latino-americanos enfrentarão as mesmas questões do mundo desenvolvido. Em grande medida, a política latina foi sequestrada pelo "dinheiro organizado". Levantamento do repórter Piero Locatelli mostra que, em 2010, 47,8% das doações eleitorais no Brasil foram feitas por empresas e que apenas 1% dos doadores foram responsáveis por 73,6% do financiamento da campanha.
O
resultado disso, seja nos Estados Unidos, na Europa, na Índia ou no
Brasil, é uma grave crise de representação. O cidadão não consegue
participar da vida pública e ter seus anseios ouvidos pelo governantes.
Os partidos, à esquerda e à direita, caminham cada vez mais para o
centro e, como diz o filósofo esloveno Slavoj Zizek, fica cada vez mais
difícil diferenciá-los. A esquerda, supostamente contrária aos absurdos
do liberalismo econômico, ou aderiu a ele e também tem suas campanhas
financiadas por grandes corporações ou não tem um modelo alternativo e
crível a apresentar.
Em
seu relatório, a Oxfam pede aos governos para tomar medidas que, ao
menos, reduzam os níveis atuais de desigualdade social aos de 1990. É
bastante improvável que os política e economicamente poderosos resolvam
fazer isso do dia para a noite. Estão aí os brasileiros que chamam o
Bolsa Família de bolsa-esmola e o ator francês Gerard Depardieu, que
preferiu dar apoio a um ditador a correr o risco de pagar impostos de
75%, para provar isso. Talvez apenas o entendimento de que, como diz a
ONG britânica, a desigualdade social é economicamente ineficiente,
politicamente corrosiva e socialmente divisiva, provoque mudanças. Para
isso, no entanto, é preciso que os poderosos entendam os riscos da
desigualdade.
Fonte: Revista Carta Capital - 22/01/2013
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