Deixa a vida me levar...

O cantor Zeca Pagodinho canta assim no seu samba: "E deixa a vida me levar, vida leva eu...". A letra sugere, para os ouvidos desatentos, que devemos viver segundo as circunstâncias e saborear cada momento, sem muitas pretensões. Seria mesmo assim?!



Os modismos de época vivem dessa ideia do "já" e do "agora", provocam cegueira existencial gue exclui as ricas experiências do já vivido e, também, não vislumbra a esperança de um novo porvir. Estar imune a esta mentalidade constitui grande desafio.

Ainda, o conceito de "bem comum" sofre mutações. Durante séculos "bem comum" foi visto como algo em que o bem individual encontra seu cumprimento. Isto é, o bem de cada pessoa está ligado ao bem do outro e da comunidade. Então, o ponto de partida era o "nós". Já na modernidade acontece uma inversão de rota, é o primado do indivíduo, onde o ponto de partida passa a ser o "eu". Aqui o bem comum nada mais é gue mera soma de interesses particulares. A descoberta do indivíduo como sujeito é enriquecimento, mas o individualismo é empobrecimento. Imediatismo, modismos e individualismo são característicos do mundo em que vivemos e, certamente, influenciam a convivência humana e definem regras de relação. Por isso, os relacionamentos das pessoas trazem a marca da desconfiança, do egoísmo, da insensibilidade e da indiferença.

Até a milenar "instituição da família" não escapa à regra. Conforme essa mentalidade vigente, como pode prosperar um projeto gue se baseia no amor recíproco, na comunhão de ideais e na cumplicidade para a sua realização? Parece impossível, não é verdade? Fala-se hoje gue o modelo conhecido de família - pai, mãe e filhos - não mais responde à realidade do mundo pós-moderno. A assim chamada família nuclear, heterossexual, seria somente mais uma forma de arranjo familiar, não o único. Afinal, o número de mulheres e homens que coordenam sozinhos seus lares, em conjunto com filhos nem sempre oriundos dos mesmos pais, é altíssimo. Até a união entre pessoas do mesmo sexo ganhou, em nosso País, reconhecimento oficial do Estado. Então, como entender e posicionar-se diante desses questionamentos? As premissas colocadas anteriormente - imediatismo, modismos de época e individualismo - influenciam decisivamente nessa mudança de comportamento e de valores e, embora ajudem na compreensão dos 'porquês', não esgotam a complexidade da questão.

Sobre a família, como cristãos conscientes, reafirmamos o princípio da 'instituição familiar', na comunhão com os senhores Bispos, reunidos em Aparecida, na 49a Assembleia da CNBB:
a) É fundamental a instituição familiar, toda a sociedade tem nela a sua base vital.
b) Deus criou o homem e a mulher à sua imagem e os destinou a ser uma só carne (Gn 1,27). Portanto, a família é o espaço existencial para a plena realização humana e para o seu desenvolvimento nas futuras gerações.
c) O matrimónio natural entre o homem e a mulher, bem como a família monogâmica, constituem um princípio fundamental do direito natural, é lei gue está escrita no coração.
d) A diferença sexual é originária e não mero produto de uma opção cultural. Equiparar as uniões entre pessoas do mesmo sexo à família descaracteriza a sua identidade e ameaça a sua estabilidade.
e) A instituição familiar corresponde ao desígnio de Deus e foi elevada pelo Cristo Senhor a dignidade de Sacramento. Ou seja, a família não continua apenas basicamente a ação criadora divina, mas também a sua ação salvadora.

Ainda sobre a união entre pessoas do mesmo sexo e a sua equiparação à família, essa ideia quer encontrar respaldo no argumento que vivemos numa sociedade laica, democrática e multidiversíficada. O contra-argumento prospera no bom-senso e na sincera busca da verdade: se a lei nega o ontológico - ou seja, o que é essencialmente humano - o Estado não seria por isso mais democrático e sim caótico, pois naturalmente fomos criados e evoluímos como homem e mulher. Pretender eguiparar as uniões de mesmo sexo à família é tão absurdo guanto seria o legislador querer revogar a lei natural, que fez o masculino e o feminino; a sociedade brasileira é laica, porém não ateia; a multidiversidade é bem-vinda e deve ser respeitada, mas, no caso em questão, pai é pai, mãe é mãe. Uma coisa é substituí-los em caráter supletivo, por exemplo, por casais de segunda união, pelo avô ou avó, por tios etc. Outra é forjar uma constelação familiar artificial, formada por pessoas do mesmo sexo.

Da vida somos protagonistas, não senhores dela. Aliás, ao contrário do gue à primeira vista parecia, essa é a sabedoria de que fala o magistral samba de 'Zeca Pagodinho', qual seja: "E deixa a vida me levar... vida leva eu! Sou feliz e agradeço por tudo gue Deus me deu... Só posso levantar as mãos pró céu, agradecer e ser fiel ao destino gue Deus me deu..." Amém!

Pe. Darci Nicioli, C.Ss.R.
Publicado na Revista de Aparecida - Agosto 2011

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